22 de fevereiro de 2005

"sem assunto"

Era sexta-feira, tinha tomado café e visto os minutos finais de um jogo de futebol ao balcão do Café Safari e não me apetecia ir para casa. Saí e senti ao ar puro. Comecei a subir os Combatentes e olhei para as luzes apagadas do apartamento, elas estavam lá dentro, provavelmente as duas já a dormir. Continuei a subir com o frio a bater-me na pele. Acompanhei a escuridão neo romântica do Jardim Botânico, vi o Sr. Karol Wojtyla de costas, e ele, de braços abertos, passou a olhar-me também, enquanto eu descia já a Alexandre Herculano. Ao fundo, na Praça, virei à esquerda, passei o barulhento bar da Associação Académica. Comecei a subir a Rua Padre António Vieira e estava a chegar à Alta, deserta e silenciosa. No elevador fui até à varanda e olhei para o vale da Sá da Bandeira, com muitas luzes acesas ao longe, muitos vultos e cenas. A Alta é, apesar do seus estado degradado, a reserva de dignidade desta cidade. Passei por várias Repúblicas, e as antigas casas de José Afonso, Eça de Queiroz, Artur Paredes, António Augusto de Aguiar. Na Rua das Flores, a antiga República Palácio da Loucura e em frente, a casa de José Régio e da Presença. Casas prestes a cair, sombras, gatos e um grafitti: “Libertem a Múmia Abu Jamal”. Um alfarrabista fechado que eu não conhecia. É fácil passar por ruas novas na Alta e como eu gostava de ter conhecido este lugar há uns séculos, ao tempo da chegada definitiva de Fernando Magno, Rei de Leão, ou mesmo antes, quando no local da Sé Velha estava uma mesquita orientada para Meca. Quase entrei no Ateneu e veio-me à memória a sua biblioteca, com a catalogação manuscrita, de caligrafia pequenina e minuciosa, escola de ideologias fora de tempo. Andava depressa e sentia o meu ritmo cardíaco e os meus passos, quantos antes de mim não terão feito o mesmo, andar por ali, sem destino certo, só para andar e olhar, só para não me deitar tão cedo. Voltei para casa. No escuro elas dormiam juntas, acompanhadas por um urso de peluche.

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